segunda-feira, 16 de maio de 2011

Nota sobre Videodrome de David Cronenberg


No ano de 2010 comecei meus estudos sobre a crueldade vinculada ao erotismo e logo descobri, por meio de minha mestra e amiga, que existia um cineasta que trabalha com este mesmo tema em seus filmes, o diretor David Cronenberg. O fato é que procurei muito as películas desse curioso cineasta e não encontrei nada em locadoras ou na Internet. As poucas horas que passo em frente a TV me proporcionaram uma grata surpresa, pois iria passar em um canal de filmes o cultuado Videodrome, filme interessantíssimo do diretor em questão. Marquei na agenda e resolvi assistir, pois previ que seria de imenso valor a experiência.
O filme trata do tema da crueldade e como assinalou o crítico que introduz os filmes no canal, é como se Cronenberg fizesse um reality show do mal, onde as pessoas passam a ter alucinações quando entram em contato com o tal programa que tem o mesmo nome do filme. A história é a seguinte: o diretor de um canal pornográfico assiste a um programa de tortura e assassinatos, que supostamente é veiculado na Malásia e após a experiência passa a sofrer alucinações. Ele procura os produtores e descobre que o programa é produzido nos EUA. De início seu interesse é puramente comercial, pois as cenas o deixaram tão perturbado a ponto de não conseguir parar de assistir mais o horrendo programa e, como um empreendedor, queria veicular o programa em seu canal. A empreitada não tem sucesso, pois logo descobre que se trata de uma seita do mal que deseja manipular as pessoas através do programa, assim como ele mesmo está sendo manipulado. O desenrolar da trama fica a critério do leitor que pode conferir assistindo ao filme.
O que realmente me chamou a atenção no filme não foi a trama, mas o fato do diretor tratar da  crueldade com cenas que extrapolam o próprio programa cruel do qual o filme trata. O que quero dizer é que as cenas das alucinações do diretor de TV são mais cruéis do que o programa que o personagem tanto queria. É um filme que testa o estômago do espectador, mas não a sua paciência, porque o enredo é desenvolvido com muita sabedoria e ação o que torna Videodrome um filme não cansativo, prendendo a atenção daquele que assiste.
Há uma carga de surrealismo no filme, pois como já assinalei, existem muitas cenas de alucinações. O que não se equipara a corrente artística de André Breton é o fato do erotismo não aparecer velado no filme. Consta que Breton pregava em sua formulação acerca do surrealismo um erotismo velado, e além disso, ainda negava qualquer forma de erotismo explicito, creditada certamente a influência que Lautréamont exercia no criador da arte surrealista. Lautréamont, em seu cultuado Cantos de Maldoror, não optou por cenas de sexo explícito, e ainda, optou por poucas cenas de sexo, diga-se de passagem, que me lembro apenas da cena de cópula de Maldoror com a fêmea tubarão. O leitor por ora, pode questionar o porquê estou então assinalando a influência do Surrealismo em Videodrome. Minha afirmação aparece no fato de que a arte surrealista tem uma intima relação com a psicologia, principalmente no que diz respeito a simulação de estados de loucura. Consta que Breton e outros surrealistas simularam a loucura para escreverem suas obras. Passo agora a algumas considerações sobre os estados de loucura do diretor de TV no filme.
O diretor descobre, como já foi dito, que passou a sofrer alucinações após ter contato com o programa Videodrome. Essas alucinações são mostradas ao espectador do filme sem nenhum indicio prévio, por mudança de luz ou algo do tipo, como ocorre na maior parte dos filmes. Isso provoca um prévio não entendimento por parte do espectador, que não sabe se o fato ocorreu ou não. Esse não entendimento é de fato uma experiência cruel não só para o personagem, mas também para aquele que acompanha sua história. O que pode ilustrar essa consideração é o conceito dado por Clément Rosset em O principio de crueldade, onde o filósofo afirma que existem vários tipos de crueldade e um deles é o da realidade do amor. A crueldade da realidade do amor, em minha leitura, se dá a partir do ponto em que o amante não tem certeza plena (me arrisco até mesmo a dizer que o amante não tem certeza nenhuma), da realidade do amor em seu parceiro. Portanto, me leva a crer que a crueldade se dá no amor a partir da incerteza. Se, então, a incerteza é um tipo de crueldade no amor, também pode ser um tipo de crueldade para aquele que entra em contato com alguma obra de arte seja ela literária, cinematográfica ou qualquer uma delas. Incerteza e não entendimento são duas experiências tão cruéis quanto aquela que nos faz sofrer na carne. No que diz respeito ao erotismo, posso afirmar que incerteza e não entendimento também fazem parte deste, pois o parceiro sofre com a incerteza de ter ou não dado prazer a sua parceira e vice-versa. Os amantes sofrem de não entendimento quando não sabem o porquê sentem prazer com certas práticas consideradas sujas ou imorais para a maioria e assim por diante. No filme isso fica claro quando o protagonista se vê em um relacionamento em que o prazer é associado a dor, já que sua parceira pede que ele a corte ou a fure na cena mais erótica do filme. Ele não consegue entender o porquê desse prazer e sofre também porque sente prazer em proporcionar a ela essas práticas consideradas até mesmo por ele degradantes.
Essas considerações deixam em evidência a carga erótico-cruel do filme e ainda que o erótico estabelece na história uma relação intima com a crueldade. Posso, portanto, afirmar que fora do campo da arte o erótico também estabelece relações com o cruel. Um exemplo claro disso é o erotismo homossexual que, por vezes, fere a moral cristã de que o homem foi feito para a mulher e a mulher foi feita para o homem. O erotismo homossexual é considerado então, uma transgressão, uma infração aos bons costumes. Cruel para o próprio homossexual e para os espectadores desse erotismo que acabam por conter seus desejos licenciosos, ou por esconder sua opção sexual. Para não ficar em apenas um exemplo posso ilustrar essa relação de crueldade/erotismo com as práticas sadomasoquistas ou escatológicas. Essas por não fazerem parte do acervo sexual “dos normais” acabam por ser não somente cruéis por abordarem a dor física, ou a proporção da mesma no outro, mas pela “anormalidade” com que se dão acabam por habitar um mundo clandestino, destinado apenas aos que optam por tais práticas. O filme em questão habita esse mundo clandestino das relações sadomasoquistas sem adentrar afundo, pois é na verdade um filme que trata de uma história surreal na qual os humanos seriam manipulados por um programa onde a realidade sadomasoquista é mostrada. Gostaria de encerrar com uma questão pertinente ao mundo contemporâneo: alguma realidade sadomasoquista não relacionada ou relacionada ao sexo é mostrada em nossos modernos reality shows?    

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